segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Lietratura X Cinema:

A Literatura e o Cinema

Desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida. Os “filmes de arte” franceses do início do século XX procuravam se legitimar como obras sérias e eruditas a partir de textos clássicos e intérpretes teatrais. A relação logo teve mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas e poesia, questão presente em diferentes literaturas, inclusive na brasileira – os modernistas são exemplos claros desse argumento. E a relação cinema/literatura continua até hoje, englobando dos clássicos mais antigos à narrativa e à poesia em produção, mais os filmes como tema e fonte de inspiração da linguagem escrita.



As diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas pelas historicidades específicas de cada linguagem: nenhum filme “repete” uma obra literária, nenhuma obra literária “repete” um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus resultados.



Mesmo um diretor muito fiel à matéria literária original (como o Nelson Pereira dos Santos de Vidas secas, em relação ao romance de Graciliano Ramos; ou o Luchino Visconti de Morte em Veneza, diante da novela de Thomas Mann) se vê obrigado a pensar em soluções narrativas e poéticas que digam respeito à imagem em movimento e ao som. No caso de Nelson, a profunda indagação de Graciliano sobre o que é um ser humano, qual a humanidade daqueles seres, foi transmutada na imagem do grupo de retirantes que chega e parte, ao som de um carro de bois, veículo inexistente, em termos visuais, na cena filmada. Luchino mesclou a requintada apresentação de época – arquitetura, cores da pintura Impressionista e Pós-Impressionista, indumentárias – a uma reflexão sobre o conjunto da obra de Thomas Mann, citando personagens e situações de seu romance Doutor Fausto, e evocando o compositor Gustav Mahler (autor de músicas apropriadas para a trilha sonora do filme) no personagem Gustav Von Aschenbach, em termos biográficos e até na aparência física.



O momento de cada fazer é outra faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Mantendo os mesmos dois grandes exemplos anteriores, Graciliano editou seu romance em pleno Estado Novo, questionando o anúncio das mudanças que os anos de 1930 no Brasil faziam. Nelson realizou seu filme em uma época em que se discutiam “Reformas da Base” para a sociedade brasileira (governo João Goulart), sendo a Reforma Agrária um de seus principais itens. Thomas Mann, por sua vez, apresentou uma Europa prestes a ruir, escrevendo a novela antes da Primeira Guerra Mundial. E Luchino Visconti fez seu Morte em Veneza depois de duas Guerras Mundiais, que englobaram o Holocausto Nazista e o Bombardeio Atômico de cidades japonesas pelas tropas estadunidenses. Mesmo respeitando seus pontos de partida literários, Nelson e Luchino não conseguiriam ser Graciliano e Thomas. E um grande artista nunca precisa se tornar clone de outro grande artista.



A literatura trabalha, quase sempre, com a palavra escrita como recurso único de elaboração (vamos esquecer, momentaneamente, a poesia visual ou material e as histórias em quadrinhos); e o cinema parte da imagem em movimento para incluir palavras, desde sua preparação até aos diálogos entre personagens ou às vozes narrativas nele presentes, mais outros sons – música, ambiente etc.



O cinema se relaciona muito freqüentemente, portanto, com a literatura. O cinema mais elaborado artisticamente transforma essa abordagem em reflexão profunda, porque mergulha com recursos de grande arte – razão sensível e expressiva – nas experiências humanas que aquela outra modalidade de grande arte elaborou verbalmente.



Seria tolice, então, comparar uma obra literária ao filme que se produziu a partir de seus termos. Sempre estaremos diante de obras diferentes. Nada garante que um grande texto resulte em um filme maior. E um livro medíocre pode ser transfigurado em grande cinema, se o diretor do filme tiver estatura para tanto.



Muito melhor será reafirmarmos a permanente necessidade de livros e filmes, ainda mais se forem grandes livros e grandes filmes. São suportes de pensar e sentir. São lugares de memória para quantos os lerem ou a eles assistirem. Um não substitui o outro, ao contrário do que jovens vestibulandos e seus professores supõem, quando assistem a filmes baseados em leituras obrigatórias – que tal pensar também em filmes obrigatórios em seus exames?



Certamente, no exemplo dos vestibulandos, fica patente a funcionalidade do filme em relação ao tempo de lazer (ou auto-aprofundamento) de que dispõe cada um, de acordo com sua idade e sua classe social. Reafirmando a necessidade de todos terem acesso aos bons filmes, é preciso enfatizar também a necessidade de todos terem acesso aos bons textos literários como tópicos de primeira necessidade na sobrevivência humana.

Evocar as relações entre cinema e literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem reciprocamente, com a condição de continuarem a existir em suas especificidades. Precisamos de bons filmes e de bons livros. Descobrir os labirintos de espaço e tempo que Alain Resnais nos apresenta em No Ano passado em Marienbad (argumento do escritor Alain Robbe-Grillet) não nos eximirá de procurar outros mundos nas palavras de João Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas (filmado, sem maiores arroubos, pelo cineasta Renato Geraldo Santos Pereira).



E esses são apenas dois exemplos, em um infinito universo de livros e filmes que podem marcar nossas vidas com a aventura da indagação sobre o mundo. Esta coletânea contribui de maneira muito especial para compreendermos em maior profundidade os diálogos entre cinema e literatura, acompanhando falas de artistas que atuam nesses dois campos e nos ajudam a entender mais faces de sua produção.Entendendo melhor os cineastas e literatos, bem como as obras que deles recebemos, tão importantes para nossas vidas, nós nos entenderemos ainda mais.





Marcos Silva

Professor da FFLCH/USP e coordenador da

coletânea Clarões da tela


Carolina nº10 2ºAM

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